A Coisa Julgada como Pilar do Estado de Direito
Primeiramente, é importante frisar que um dos fundamentos centrais do Estado de Direito é a confiança legítima na estabilidade das decisões judiciais. A chamada coisa julgada — expressão da autoridade e da definitividade das sentenças — constitui a base sobre a qual se ergue a previsibilidade das relações sociais, o respeito ao Poder Judiciário e a segurança jurídica enquanto valor constitucional. Portanto, romper esse alicerce é abrir caminho para a incerteza institucional.
PEC 66/2023: Uma Ameaça Direta às Decisões Judiciais
Não é admissível que, mais uma vez, agora por meio da Proposta de Emenda à Constituição n. 66/2023, se tente caminhar exatamente nessa direção. Sob o argumento de ajuste fiscal e limitação orçamentária, a proposta confere aos entes federativos a prerrogativa de determinar, com base em sua receita corrente líquida, quanto, como e quando pagar precatórios judiciais. Ou seja, dívidas já reconhecidas em caráter definitivo. Em termos objetivos, trata-se da possibilidade de o Estado descumprir sentenças transitadas em julgado.
As Consequências da Inadimplência Institucionalizada
O desrespeito à coisa julgada não apenas desorganiza a função jurisdicional, mas também ameaça a integridade do próprio pacto federativo e do sistema de freios e contrapesos que estrutura nossa Constituição. De fato, ao permitir que a Administração Pública reescreva, adie ou relativize obrigações impostas pelo Judiciário, substitui-se o império da lei pela conveniência fiscal e a soberania das decisões judiciais pela lógica da inadimplência institucionalizada.
Dessa forma, a consequência prática dessa flexibilização é a criação de um ambiente de instabilidade jurídica. Nele, cidadãos — muitas vezes idosos, doentes ou herdeiros de longas batalhas judiciais — veem seus direitos reduzidos a números em planilhas orçamentárias. Trata-se, portanto, de uma inversão perversa: vence-se do Estado no Judiciário, mas perde-se no Legislativo sob o pretexto do equilíbrio fiscal.
Violação do Princípio da Isonomia
Ademais, a proposta fere o princípio da isonomia ao criar diferentes categorias de credores conforme a capacidade fiscal do ente devedor. Enquanto alguns receberão o que lhes é devido em tempo razoável, outros seguirão aguardando por prazo indeterminado, sem qualquer previsibilidade. Nesse cenário, a Justiça torna-se desigual e seletiva, o que contraria frontalmente os valores republicanos.
Precedentes do STF e a Inconstitucionalidade da Proposta
Além disso, sob o aspecto técnico-constitucional, a PEC 66/2023 — que poderíamos batizar como PEC do Calote — não é a primeira tentativa do governo de não pagar o que deve. A proposta colide com reiteradas manifestações do Supremo Tribunal Federal (STF). O tribunal já declarou inconstitucionais tentativas semelhantes de flexibilizar o pagamento de precatórios. Isso ocorreu, por exemplo, com a Emenda Constitucional n. 113/2021, que previa, assim como a PEC em comento, a modificação de normas relativas ao novo regime fiscal e autorizava o parcelamento de débitos previdenciários dos Municípios, dos Estados e da União.
A Necessidade de Resistência Institucional
Diante desse quadro, é dever das instituições que compõem o sistema de Justiça resistir. A Constituição não pode ser relativizada em momentos de crise, haja vista que é justamente nesses períodos que ela deve se impor como garantia de estabilidade, legalidade e proteção dos direitos fundamentais.
Na verdade, não se trata de mera divergência hermenêutica, mas de uma clara ameaça à autoridade judicial e à separação dos poderes.
Conclusão: Sentença Judicial Não é Sugestão
Portanto, o desrespeito à coisa julgada não é solução para crise alguma. Muito pelo contrário, mina a confiança no Estado, afasta investimentos, encarece o crédito e enfraquece o tecido institucional. Uma democracia robusta não admite que a sentença judicial seja tratada como sugestão. A Justiça não se negocia, não se parcela, não se adia. Enfim, sentença é ordem, não conveniência!
Por Campello & Siqueira Advocacia.

Revista Paradigma Jurídico Ed. IV pás. 80/81 – Agosto 2025.




