Em um escritório onde décadas de experiência jurídica se acumulam, Luiz e Felipe Guerra, pai e filho, abrem as páginas de uma reforma que promete transformar o Brasil. Contudo, ela carrega consigo contradições profundas. A promessa ecoa há anos nos corredores do Congresso: simplificar o sistema tributário brasileiro, reconhecidamente um dos mais intrincados do planeta. No entanto, quando esses especialistas da Guerra Advocacia Corporativa debruçam-se sobre os detalhes da nova ordem tributária, revelam uma realidade onde a simplicidade parece ser uma miragem distante. A conversa transcorre com a precisão de quem já navegou por mares turbulentos da legislação fiscal. Em outras palavras, não há eufemismos. A reforma tributária, afirmam, chegará com uma conta mais alta para todos: empresas e consumidores finais. E isso não é especulação; é matemática pura aplicada sobre um cenário onde a racionalização convive com o aumento da complexidade.
O Dilema do Contencioso: Onde os Conflitos Serão Resolvidos?
O primeiro dilema que emerge dessa nova configuração tributária reside no futuro do contencioso. Quando impostos sobre o consumo se unificam, cria-se uma base de cálculo comum para esferas que historicamente operavam em universos jurídicos distintos – federal, estadual e municipal. Assim, surge uma questão crucial: onde e como os conflitos serão resolvidos?
“Ainda se discute se será no âmbito federal, ou se vai haver um órgão que vai unificar, um contencioso nacional”, explicam os advogados, destacando uma das grandes lacunas da reforma. O recém-criado Comitê Gestor assumirá as funções de emitir normas regulatórias e gerir a arrecadação, mas não julgará disputas. Dessa forma, essa indefinição representa uma página em branco que pode determinar o nível de segurança jurídica para as próximas décadas.
A preocupação central dos entrevistados concentra-se na possibilidade de decisões conflitantes entre diferentes instâncias, criando um cenário de batalhas jurídicas prolongadas. De fato, em um país onde o tempo de resolução de conflitos tributários já representa um desafio histórico, essa incerteza adiciona uma camada de complexidade que pode comprometer a efetividade do novo sistema.
Simples Nacional: Um Ponto de Estabilidade com Novos Desafios
Entre tantas incógnitas, a manutenção do Simples Nacional emerge como um elemento de estabilidade. Para a vasta maioria das empresas brasileiras, aquelas que movimentam a economia no varejo, no comércio local e nos pequenos serviços, a extinção deste regime representaria um impacto devastador.
“Foi importante a manutenção do Simples, porque sempre é uma opção da empresa”, pontuam Felipe e Luiz Guerra. A sobrevivência deste sistema, ainda que em formato adaptado, constituiu uma conquista estratégica. Apesar disso, essa manutenção vem acompanhada de uma nova dinâmica: empresas precisarão avaliar anualmente se permanecem no regime simplificado ou migram para o modelo de débito e crédito amplo. Essa decisão não será automática. Pelo contrário, fatores como teto de faturamento, particularidades operacionais e análise de custos-benefícios ditarão o caminho. O planejamento tributário, já complexo, ganha contornos ainda mais estratégicos, transformando-se em ferramenta de sobrevivência empresarial.
A Transição e o Problema dos Créditos Acumulados
Antes mesmo que o futuro se concretize, o presente já impõe desafios consideráveis. O problema dos saldos credores do ICMS e do PIS/COFINS representa uma questão urgente que afeta milhares de empresas. Medidas governamentais dos estados sempre limitaram tanto o volume mensal de utilização de créditos do ICMS quanto o prazo para seu aproveitamento. Recentemente, o governo federal também criou restrições à utilização ampla dos créditos do PIS e da COFINS. “Muitas empresas estão preocupadas porque algumas delas não vão conseguir nem utilizar esse crédito todo”, alertam. O “estoque” de créditos acumulados ao longo dos anos torna-se, portanto, um fardo na transição para o novo modelo. A capacidade do Estado de gerir essa dívida com os contribuintes gera questionamentos legítimos sobre a viabilidade prática da transição. Consequentemente, a situação cria um paradoxo: enquanto o novo sistema promete maior fluidez na compensação de créditos, o legado do sistema anterior permanece como um problema sem solução clara. Empresas que operaram dentro das regras vigentes encontram-se agora com valores que podem nunca ser recuperados integralmente.
A Contradição Fundamental: Mais Regras em Nome da Simplificação
A narrativa oficial fala em simplificação, mas os números contam uma história diferente. A lei complementar que regulamenta os novos tributos conta com quase 600 artigos, um volume que desafia qualquer definição de simplicidade. Além disso, a unificação de tributos vem acompanhada de uma avalanche de novas obrigações acessórias. “O contribuinte vai ter que ter toda essa parafernália de assessoria, de ferramentas para transmitir essas informações para poder ter direito aos créditos”, detalham os advogados. O ônus da implementação – sistemas, pessoal especializado, consultoria – recairá diretamente sobre as empresas. Logo, investimentos em tecnologia e capacitação tornam-se obrigatórios, não opcionais.
Esse cenário revela uma contradição fundamental: enquanto se promete redução de complexidade, cria-se uma nova camada de exigências técnicas e operacionais. Pequenas e médias empresas, principalmente, enfrentarão o desafio de se adequar a essas demandas sem comprometer sua viabilidade financeira.
O Aumento Inevitável da Carga Tributária
A consequência mais direta e inevitável, na perspectiva dos especialistas, é o aumento da carga tributária sobre o consumo. “Apesar de o discurso ser a racionalização e a simplificação do sistema tributário, vai haver um aumento da carga. Quanto a isso, não há dúvida”, afirmam categoricamente.
A reforma demorou décadas para sair do papel precisamente porque nenhuma esfera de governo desejava perder receita. Por isso, a solução encontrada parece contemplar uma situação onde todos os entes federativos ampliam sua arrecadação. A alíquota projetada em torno de 27% posicionará o Brasil entre os países com maior taxação sobre o consumo no mundo.
O setor de serviços, historicamente beneficiado por alíquotas menores, sentirá de forma particular esse impacto. Afinal, atividades que antes gozavam de tratamento diferenciado passarão a enfrentar uma oneração expressiva, com reflexos diretos na formação de preços e competitividade.
Ressarcimento de Créditos: O Ceticismo do Mercado
O funcionamento efetivo do novo sistema de crédito e débito dependerá fundamentalmente da agilidade governamental em ressarcir as empresas pelos valores devidos. Contudo, a experiência histórica brasileira nesse aspecto gera profundo ceticismo entre os operadores do direito tributário.
“Há receio de que os entes não tenham capacidade de ressarcir os contribuintes quando estes fizerem os pedidos”, pontuam, comparando a retenção desses valores a um “empréstimo compulsório”. A morosidade tradicional dos órgãos públicos em devolver créditos tributários pode transformar o novo sistema em uma fonte adicional de problemas de caixa para as empresas. Nesse sentido, essa questão torna-se ainda mais crítica quando consideramos que o sistema foi desenhado com a premissa de maior dinamismo na circulação de créditos. Se essa premissa não se concretizar na prática, o resultado pode ser o oposto do prometido: maior dificuldade financeira para as empresas, especialmente aquelas com operações que geram naturalmente saldos credores.
Arrecadação em Alta, Gasto sem Controle
A reforma tributária revela um paradoxo inquietante. Por um lado, aumenta-se a arrecadação através de novas metodologias. Por outro lado, a despesa pública continua crescendo e normas de responsabilização de agentes públicos são flexibilizadas. “O governo teria que fazer, junto com a reforma tributária, uma reforma administrativa, uma redução de custos”, argumentam.
Sem contenção efetiva de despesas, a equação fiscal permanece desequilibrada. Assim, o aumento da arrecadação não serve para reduzir a pressão sobre os contribuintes, mas para alimentar uma máquina pública em expansão. O resultado final é o repasse inevitável de custos para a sociedade, contribuindo para pressões inflacionárias que corroem o poder de compra.
Essa dinâmica expõe uma contradição estrutural na concepção da reforma: busca-se eficiência na arrecadação sem correspondente eficiência no gasto público. Desse modo, o contribuinte, individual ou empresarial, torna-se refém de um sistema que otimiza apenas um lado da equação fiscal.
O Papel Estratégico da Assessoria e da Tecnologia
Nesse contexto de transformação profunda, o papel da assessoria jurídica especializada e da tecnologia assume importância estratégica. A interpretação das novas normas e a adaptação de processos empresariais exigirão competências específicas que muitas organizações ainda não possuem.
Felipe e Luiz Guerra apontam para o potencial da inteligência artificial e de novas ferramentas digitais como elementos que podem auxiliar na redução de custos operacionais e na navegação da complexidade regulatória. Todavia, ressaltam que a tecnologia será complementar, não substituta, do conhecimento especializado.
Para as empresas, o caminho será de adaptação constante, guiado por consultoria atenta às nuances da nova legislação. Com efeito, o planejamento tributário deixa de ser uma atividade anual para se tornar um processo contínuo de otimização estratégica. Aquelas organizações que conseguirem transformar o emaranhado de regras em vantagem competitiva sairão fortalecidas; as demais enfrentarão pressões crescentes sobre suas margens.
Conclusão: O Desafio da Adaptação é Imediato
A reforma tributária brasileira representa mais do que uma mudança de regras; constitui uma redefinição das relações entre Estado e contribuintes. Enquanto o discurso oficial enfatiza simplificação e racionalização, a realidade prática aponta para maior complexidade operacional e carga tributária elevada. Os desafios identificados pelos especialistas da Guerra Advocacia Corporativa não são especulações. Pelo contrário, são cenários concretos que se desenham a partir da análise técnica das normas aprovadas. A indefinição sobre o contencioso, os problemas de transição com créditos antigos, o aumento da carga sobre o consumo e as exigências tecnológicas adicionais compõem um quadro que exigirá adaptação intensa do setor produtivo. Enfim, a conta, como preveem Felipe e Luiz Guerra, será inevitavelmente mais alta. A questão não é se isso acontecerá, mas como empresas e profissionais se prepararão para esse novo cenário. A simplificação prometida ficou para o futuro; o desafio da adaptação é para agora.

Revista Paradigma Jurídico Ed. IV págs. 64/65 – Agosto 2025.





